Com a palavra, o senhor Rubem Alves
Não sabemos, por que é que eles têm de saber?
Confesso: se tentasse entrar na
universidade via vestibular, não passaria. Meu consolo é saber que eu
não estaria sozinho. Teria muitos companheiros. Os reitores de nossas
grandes universidades seriam os primeiros. A seguir, respeitáveis
professores e pesquisadores. Talvez não passassem nem mesmo em suas
próprias disciplinas. É duvidoso que um professor que há anos se dedica a
pesquisas de biologia molecular ainda se lembre de como resolver
problemas estatísticos de genética. Também os professores dos cursinhos:
cada um passaria brilhantemente na disciplina de sua especialidade. Mas
é duvidoso que um professor de português consiga resolver problemas de
química ou física. Com eles, os professores que elaboram as questões que
os alunos terão de responder. Para eles, vale o que foi dito sobre os
professores dos cursinhos. Por fim, os diretores das empresas que
preparam os vestibulares... Essa hipótese desaforada poderia ser testada
facilmente: bastaria que os personagens acima mencionados se
submetessem aos vestibulares. Claro: seria proibido que se preparassem. O
objetivo seria testar o que foi realmente aprendido. O que foi
realmente aprendido é aquilo que sobreviveu à ação purificadora do
esquecimento. O aprendido é aquilo que fica depois que o esquecimento
faz o seu trabalho...
Vestibulares:
porta de entrada para a universidade? Seria bom se sua função se
limitasse a isso. O sinistro está não no que é dito mas no que permanece
não dito: os vestibulares são um dragão devorador de inteligências cuja
sombra se alonga para trás, cobrindo adolescentes e crianças. Desde
cedo pais e escolas sabem que a escola deve preparar para os
vestibulares. Os vestibulares, assim, determinam os padrões de
conhecimento e inteligência a serem cultivados. Mas não existe nada mais
contrário à educação que os padrões de conhecimento e inteligência que
os vestibulares estabelecem.
O
escritor Mário Prata escreveu uma crônica sobre as meninas jogadoras de
voleibol. Era uma crônica leve, bem humorada, picante. Era impossível
não sorrir ao lê-la. Lida, ficava para sempre na memória pois a memória
guarda o que deu prazer. Passados alguns meses ele voltou ao assunto da
primeira, numa crônica dirigida, se não me engano, ao senhor ministro da
Educação. É que sua primeira crônica fora usada, na íntegra, num exame
vestibular. Para um escritor, ter uma crônica transcrita, na íntegra,
num exame vestibular, equivale a uma consagração. Mário Prata estava
felicíssimo. Exceto por um detalhe: os examinadores, para transformar
sua crônica em objeto de exame, prepararam uma série de questões sobre a
mesma, cada uma delas com várias alternativas. Mário Prata resolveu
então brincar de vestibulando. Tentou responder as questões. Não acertou uma!
(Eu me saí pior do que ele. Tentei responder as questões, mas houve
algumas que nem mesmo entendi!). Se o vestibular fosse para valer, ele
teria zerado no texto que ele mesmo escrevera. Ele se dirigiu então ao
senhor ministro de Educação comentando esse absurdo. E perguntou se não
teria sido muito mais inteligente se os examinadores, gramáticos,
tivessem pedido que os moços escrevessem um parágrafo, provocados por
seu artigo. Aqueles saberes esotéricos que lhes eram pedidos nunca
teriam qualquer uso em suas vidas.. Compreende-se que, como resultado do
seu preparo para os vestibulares os jovens passem a detestar
literatura.
Minha filha
queria ser arquiteta. Como não havia outro caminho, matriculou-se num
cursinho. Eu a via sofrer tendo de memorizar coisas que não lhe faziam
sentido. Fiquei com dó e, por solidariedade, resolvi fazer um
sacrifício: passei a estudar com ela. Estudei meiose e mitose, as causas
da guerra dos cem anos, cruzamento de coelhos brancos com coelhos
pretos... Estudei também, contra a vontade e sem interesse, a necropsia
da língua chamada análise sintática. Não sei para que serve. E dizia à
minha filha, à guisa de consolo: "Você tem de aprender essas coisas que
você não quer aprender porque a burocracia oficial assim determinou. Mas
não se aflija. Passados dois meses quase tudo terá sido esquecido. Só
sobrarão os conhecimentos que fazem sentido..." Pergunto a você, meu
leitor: de tudo o que você teve de estudar para passar no vestibular, o
que sobrou?
Por que nós,
professores universitários, não passaríamos no vestibular? Por termos
memória fraca? Não. Por termos memória inteligente. Burras não são as
memórias que esquecem mas as memórias que nada esquecem... A memória
inteligente esquece o que não faz sentido. A memória viaja leve. Não
leva bagagem desnecessária.
E aí eu pergunto: "Se nós,
professores já dentro da universidade, não passaríamos nos exames
vestibulares, por que é que os jovens que ainda estão fora têm de
passar?" É irracional. Especialmente em se considerando que irá
acontecer com eles aquilo que aconteceu conosco: esquecerão... Haverá
uma justificação pedagógica para esse absurdo? Ainda não a encontrei.
Eu sou Rubem Alves , sou educador e escritor. (...)
Extraído de http://www.rubemalves.com.br/senosnaosabemos.htm
Relembrei essas palavras com
um frio intenso na espinha. Como preparar meus alunos para entrar na
cabeça de quem faz as questões dos vestibulares? Como entender a cabeça
de cada um? Se Mário Prata interpretando a si mesmo "erra", nós – pobres
mortais – havemos de errar sistematicamente, a cada gabarito feito,
sobretudo nas questões de certo ou errado.
Erramos, mas não desistimos nunca. Mas a insegurança é vizinha da nossa morada.
Opinião do Blogueiro: Achei muito interessante este artigo, gostei muito de ler e queria que vocês lessem também. Obrigado.
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